Pela metade
Não há nada que me deixe mais frustrada do que pedir sorvete de
sobremesa,contar os minutos até ele chegar e aí ver o garçom colocar na minha
frente uma bolinha minúscula do meu sorvete preferido.
Uma só.
Quanto
mais sofisticado o restaurante, menor a porção da sobremesa.
Aí a vontade
que dá é de passar numa loja de conveniência, comprar um litro de sorvete bem
cremoso e saborear em casa com direito a repetir quantas vezes a gente quiser,
sem pensar em calorias, boas maneiras ou moderação.
O sorvete é só um
exemplo do que tem sido nosso cotidiano.
A vida anda cheia de meias porções,
de prazeres meia-boca, de aventuras pela metade.
A gente sai pra jantar, mas
come pouco.
Vai à festa de casamento, mas resiste aos bombons.
conquista
a chamada liberdade sexual, mas tem que fingir que é difícil (a imensa maioria
das mulheres continua com pavor de ser rotulada de 'fácil').
Adora tomar
um banho demorado, mas se contém pra não desperdiçar os recursos do planeta./
Tem vontade de ficar em casa vendo um dvd, esparramada no sofá, mas se
obriga a ir malhar./
E por aí vai.
Tantos deveres, tanta
preocupação em 'acertar', tanto empenho em passar na vida sem pegar
recuperação...
Aí a vida vai ficando sem tempero, politicamente correta e
existencialmente sem-graça, enquanto a gente vai ficando melancolicamente sem
tesão...
Às vezes dá vontade de fazer tudo “errado”.
Deixar de lado
a régua, o compasso, a bússola, a balança e os 10 mandamentos.
Ser ridícula,
inadequada, incoerente e não estar nem aí pro que dizem e o que pensam a nosso
respeito.
Recusar prazeres incompletos e meias porções.
Nós, que não
aspiramos à santidade e estamos aqui de passagem, podemos (devemos?) desejar
várias bolas de sorvete, bombons de muitos sabores, vários beijos bem dados, a
água batendo sem pressa no corpo, o coração saciado.
Um dia a gente cria
juízo.
Um dia...
Não tem que ser agora.
Por isso, garçom, por
favor, me traga: cinco bolas de sorvete de chocolate...
Depois a gente vê
como é que faz pra consertar o estrago
Danuza Leão
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